Etnodesenvolvimento, mercado e mecanismos de fomento: as possibilidades reais de desenvolvimento sustentado para sociedades indígenas.
Problemas de qualificação de pessoal para novas formas de ação indigenista
Antônio Carlos de Souza Lima MN/UFRJ
Antonio Carlos de Souza Lima discute os problemas ligados à formação dos profissionais encarregados de lidar com as questões indígenas, a partir da constatação da carência não apenas de pessoal qualificado, como também de mecanismos institucionais propiciadores de capacitação adequada. Situando a questão sobretudo no ângulo das carências da sociedade envolvente e do aparelho de Estado – sem excluir a necessidade de capacitação dos povos indígenas para gerir seus próprios problemas -, o texto dialoga, em primeiro lugar, com os antropólogos, examinando suas possibilidades de inserção profissional em um quadro que ampliou significativamente o mercado de trabalho extra-universitário e que impõe uma reflexão mais detida sobre os dilemas enfrentados nessas novas posições. Recusando a perspectiva ingênua, muitas vezes adotada pelos recém-formados, de situar os antropólogos como meros aliados das povos indígenas, Souza Lima indica a necessidade de ampliar o conhecimento desses profissionais em relação ao universo das ideologias em jogo nos mundos sociais com que se depararão e prepará-los para acionar os instrumentos disponibilizados pela disciplina no cotidiano de suas práticas, exercendo nestas a mesma desnaturalização que se pede ao antropólogo em campo. Assumindo a posição de “profissionais do estranhamento”, estariam contribuindo para o fortalecimento de uma atitude dialógica, negociando e traduzindo significados entre índios e não-índios, “lendo” e gerindo os conflitos inerentes à vida social. Ao sublinhar a urgência quanto à produção de dados concretos sobre essas situações sociais, Souza Lima destaca a importância de se publicizar e analisar as experiências brasileiras em antropologia da ação, transformando sua sistematização em rotina.
O segundo grupo de profissionais enfocados pelo texto é o dos técnicos em indigenismo da FUNAI. Após um breve resumo sobre as formas de treinamento a que essa categoria veio sendo submetida a partir dos cursos de indigenismo oferecidos entre 1970 e 1985 pela FUNAI para seus concursados , indica mais uma vez as vantagens da produção de conhecimento escrito como instrumento para a transmissão de conteúdos e rotinização, em detrimento da oralidade, que passou a vigorar como registro preferencial nessa área, em parte devido à falta de recursos e ao isolamento social e geográfico com que os técnicos se confrontariam ao irem para campo. Atenção especial é dada à concepção do curso de 1985 como experiência inovadora, por ter situado a tarefa indigenista menos como mediação tutelar e mais como assessoramento dos povos indígenas, inspirado em outros modelos de experiência indigenista. Da mesma forma que no caso dos antropólogos, Souza Lima ressalta a importância do registro e da reflexão sobre as práticas realizadas, sobretudo em um quadro no qual a precariedade das rotinas e dos processos de treinamento para a ação com povos indígenas foi e ainda é muito grande.
Quanto aos indígenas, uma vez que a capacitação para a concorrência aos novos mecanismos de fomento tem sido indicada como uma das principais necessidades, Souza Lima considera que esta deve vir acompanhada de formação especializada nos problemas que circundam as questões indígenas – terreno em que a antropologia voltada para o estudo de problemas de desenvolvimento e políticas públicas está particularmente capacitada a contribuir, inclusive no que diz respeito ao repasse de métodos e técnicas. O texto se encerra indicando a produção de conhecimento como fator essencial para atuações mais conseqüentes em quaisquer áreas, sobretudo nas de trabalhos práticos, considerando que, para construí-lo, um curso voltado para profissionais de nível universitário de diversas áreas – jurídicas, sanitárias, educacionais e de política cultural -, com a exigência de um trabalho final escrito, seria uma contribuição importante, atingindo tanto profissionais que ocupam posições na administração pública quanto integrantes da cooperação internacional e os indígenas envolvidos. Iniciativas como essa são apresentadas como caminho para a retirada da ação indigenista da categoria de memória, tornando-a parte do fazer cotidiano e conferindo-lhe os signos daquilo que realmente veicula – a implementação de políticas de Estado.
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André Cruz (União das Nações Indígenas – UNI / Tefé – AM)
André Cruz faz uma defesa veemente do papel das organizações indígenas como mediadoras do conhecimento sobre os índios, ao apresentar a situação da região de atuação da UNI-Tefé, que abrange os rios Solimões, Juruá, Jutaí e Japurá, na qual habitam nove povos indígenas diferentes. Comenta ser o Seminário a primeira ocasião em que a entidade foi chamada a participar de uma conversa sobre os índios junto com antropólogos, assessores jurídicos e autoridades, apesar de estar estruturada desde 1989. Afirma que a presença dos índios em eventos desta natureza deveria ser uma prática corrente, e o melhor antídoto para que estes possam estar a par e influir nas decisões sobre seus destinos.
Cruz apresenta demandas específicas quanto à formação de funcionários da FUNAI, mostrando que não só faltam-lhes conhecimentos apropriados para orientar os índios em questões práticas e legais, como muitas vezes os chefes de posto assumem a defesa dos brancos, posicionando-se contrariamente aos interesses indígenas. Cobra também um melhor preparo dos antropólogos para evitar problemas no momento das demarcações de terra. Quanto à questão da saúde, faz questão de não entrar no mérito da disputa entre a FUNAI e a Fundação Nacional de Saúde – FNS, mas deixa claro que os índios são favoráveis a uma presença efetiva dos poderes públicos no setor, de forma a que as organizações indígenas não sejam obrigadas a arcar com seus ônus, como vem ocorrendo com freqüência. Defende ainda a formação de agentes de saúde indígenas.
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Bruna Franchetto (Museu Nacional UFRJ)
Bruna Franchetto debate o modelo da “educação bilíngüe intercultural específica e diferenciada” que norteia atualmente os programas de educação indígenas, chamando a atenção para os marcos missionários que o geraram e para a possibilidade de alterar sua perspectiva muitas vezes catequizadora em benefício de ideologias e práticas libertadoras, que permitam a aquisição crítica de conhecimentos e sua utilização criativa e autônoma por parte de povos minoritários e diversos. Franchetto condena a utilização da retórica em prol da educação bilíngüe por parte do Estado como uma espécie de panacéia tardia para os males da integração a qualquer custo, ao mesmo tempo em que ressalta a timidez das medidas efetuadas no Brasil para o efetivo reconhecimento dos chamados direitos lingüísticos, apesar do reconhecimento, pela Constituição de 1988, do caráter pluricultural e multilíngue do país.
Na esfera das ONGs, detecta a presença de duas posições antagônicas no que diz respeito à associação entre o princípio da autodeterminação e a educação bilíngüe. De um lado, situa as propostas que se pretendem críticas e inovadoras em relação ao modelo missionário da educação bilíngüe, as quais, em que pese a ênfase em noções como as de participação e co-autoria índio-branco, raramente levam em conta efetivamente os discursos indígenas sobre escola, educação, alfabetização e escrita. Quando o fazem, é apenas no sentido de introduzir melhorias nos respectivos projetos, que permanecem inquestionáveis em sua existência. Do outro, há os que defendem a separação radical entre a escola, locus da relação com o mundo exterior, e a comunidade, centro da defesa lingüística e cultural, sublinhando como condições essenciais para que tal separação não seja destrutiva a garantia da integridade territorial de cada povo, a existência de alternativas de sobrevivência dignas e o respeito às demandas formuladas pelos índios.
Ao analisar sua experiência como membro de um projeto governamental de formação de professores da Terra Indígena do Xingu, Franchetto sublinha as duas principais dificuldades enfrentadas. A primeira se relaciona à tentativa de lidar com a enorme heterogeneidade de povos e línguas artificialmente reunidas no território do Xingu como se ali houvesse, de fato, uma unidade. A segunda seria, ao lado do experimentalismo inevitável do projeto, a difícil leitura das representações e reivindicações dos próprios indígenas. Entre estes, além dos que reagem de maneira positiva ao projeto, encarando-o como possibilidade de resgate e revitalização lingüística e cultural, há os que consideram a introdução do saber e da língua indígena na escola – espaço/tempo por excelência do saber e da língua dos brancos – uma apropriação autoritária e perigosa, além de uma retórica que mascara o oferecimento de uma educação de qualidade inferior e guetificante.
Ao fim, Bruna Franchetto chama a atenção para a pluralidade de alternativas hoje oferecidas aos índios no campo educacional – de projetos de ONGs a escolas públicas e missionárias -, assim como para a heterogeneidade de reações e expectativas dos diferentes povos indígenas às diversas propostas que apresentam. Considera que faltam avaliação, debate e reflexão sobre esse quadro complexo, embora a escolarização dos povos indígenas não esteja deixando de avançar por causa disto, muitas vezes em cima de práticas autoritárias e enganadoras.
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Francisca Novantino
(Conselho de Educação Indígena do Estado do Mato Grosso)
Francisca Novantino comenta dois projetos de educação escolar indígena no Mato Grosso, o projeto de formação de professores do Parque Nacional do Xingu e o projeto Tucum, ambos voltados para a colocação em prática da legislação que prevê uma escola diferenciada, bilíngüe e específica para os índios. Indica a discussão em torno das práticas pedagógicas tradicionais indígenas e do currículo das escolas indígenas entre os principais pontos contemplados pelos projetos, apresentando em seguida a posição favorável das comunidades indígenas de seu estado no sentido de transformar exclusivamente em políticas públicas as iniciativas de escolarização dos índios. Este modelo é visto não apenas como mais democrático, por garantir a todos os grupos iguais oportunidades de acesso à educação, como também mais aberto à construção de práticas pedagógicas libertadoras.
Novantino destaca a demanda pelo ensino de 3 grau entre os índios, defendendo a proposta da senadora Marina Silva de um tratamento diferenciado para os povos indígenas no acesso à universidade. Comenta ainda a necessidade do convencimento das autoridades e do exercício da prática política pelos índios como meio para mudar uma mentalidade de séculos de preconceito contra os índios. Nesse sentido, afirma também a importância da formação do pessoal que atua junto às populações indígenas, distinguindo formação de capacitação para indicando que esta última refere-se a um processo mais profundo, que visa a transformar mentalidades de forma duradoura.
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João Krikati (CIPR)
João Nonoy Krikati critica os procedimentos utilizados pelas agências indigenistas do estado brasileiro, SPI e FUNAI, responsabilizando-as pela situação de dependência e pobreza a que foram reduzidos os povos indígenas no Brasil. Ao mesmo tempo, condena a recusa do governo em continuar mantendo as nações indígenas, sob a alegação de falta de recursos, sem que sejam criados mecanismos adequados à substituição da cultura tutelar até hoje vigente.
Com relação à questão da educação e capacitação indígenas, levanta o problema da identidade étnica, afirmando não ver contradição entre ser índio e adquirir os elementos formais da educação dos brancos.
Lamenta a falta de informação dos índios das aldeias sobre as manifestações ligadas às comemorações dos 500 anos do Descobrimento, comenta a posição ecologicamente correta da maioria dos povos indígenas e cobra o término dos processos de demarcação de terras indígenas ainda não concluídos.
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Paul Little (Depto de Antropologia Universidade de Brasília)
Paul Little define, a partir do conceito de intercientificidade, as possibilidades de estabelecimento de um diálogo entre ciências como a base principal para uma nova ação indigenista no Brasil, considerando que, assim como a relação entre distintas culturas produz formas de interculturalidade, a relação entre distintos sistemas de adaptação produziria formas de intercientificidade. Depois de situar a etnoecologia como o estudo dos sistemas que os grupos humanos utilizam em suas relações com a natureza, propõe a realização de cursos de sensibilização de técnicos, cientistas e funcionários governamentais que trabalham com sociedades indígenas em torno de outras formas de fazer ciência, sugerindo a implementação de treinamentos em etnoecologia, que teriam lugar nas próprias áreas indígenas. Ao mesmo tempo, ao destacar que um diálogo intercientífico consistente supõe igualdade de direitos para ambos os lados, acentua a necessidade de atualização da legislação brasileira no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos intelectuais dos povos indígenas, discutindo especificamente o problema das normas de copyright e a questão do uso de patentes, num quadro em que a utilização de conhecimentos acumulados dos povos tradicionais pode desempenhar um papel estratégico em áreas de ponta do desenvolvimento científico atual, a exemplo da biotecnologia.
Destaca também a conveniência da aprovação pelo Brasil da cláusula 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que garante o “direito dos povos”, categoria especial dos direitos humanos que se aplica a sociedades diferenciadas dentro de uma sociedade nacional, abrindo caminho para a instauração no país de um sistema de “pluralismo legal”. Neste sentido, argumenta sobre a necessidade de instituir-se um tipo de treinamento para as lideranças e organizações indígenas que as socialize e esclareça sobre a legislação do país referente às terras indígenas e suas sociedades, bem como às políticas de ordenamento territorial vigentes, de forma a permitir-lhes uma melhor atuação na defesa de seus direitos, chamando atenção para o fato de que a situação de interculturalidade deve representar tanto uma contribuição para a autonomia e a autosustentabilidade dos povos indígenas, quanto para a dignidade e sustentabilidade da sociedade brasileira como um todo. Nestes termos, destacaríamos que uma comunidade interétnica de comunicação assim constituída enquanto uma comunidade de argumentação poderia se apresentar como esboço de modalidades de ruptura de muitas outras situações de enorme assimetria política.
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