Lógica de administração ou lógicas étnicas? Princípios articuladores de uma nova forma de ação do Estado frente às populações indígenas.
Aílton Krenak (Núcleo de Cultura Indígena – NCI)
Ailton Krenak faz uma reflexão sobre as relações entre o estado brasileiro e as sociedades indígenas, chamando atenção para a necessidade de enquadrá-las em perspectiva histórica, de forma a evitar o risco de situar o atual momento como uma crise circunstancial a pedir soluções de emergência. Para o autor o que está em jogo é o sentido geral das ações de um estado que sempre atuou com o objetivo claro de integrar os povos indígenas a seus próprios projetos de exploração da força de trabalho, objetivo de resto extensivo a vários outros segmentos da população brasileira.
A partir desta visão de longo prazo, alerta para o perigo de que as lideranças indígenas aceitem entrar em debates concebidos sob a pressão do atendimento de necessidades políticas de circunstância do estado brasileiro, sobretudo quando estas podem conduzir ao fim das obrigações do estado para com os povos indígenas. Considerando imoral que sejam feitas contas sobre o quanto deve ser pagar a grupos para com os quais se contraiu uma dívida de cinco séculos, reclama, ao invés, a elaboração de um projeto político claro e de alto nível para os povos indígenas pelo Estado, respaldado por uma visão de mundo que respeito o direito destes povos de manter suas tradições, ao mesmo tempo em que lhes permita capacitar-se para interagir com os padrões ditados pela vida moderna e ocidental.
Krenak analisa o paternalismo que fundou as relações de tutela e assistência às comunidades indígenas, passando em revista momentos chave da história recente do Brasil a este respeito. Critica em seguida o atual excesso de seminários, conferências e reuniões públicas em que se cobra a presença de lideranças indígenas, indicando a importância de identificar claramente os promotores e agendas destas reuniões, de forma a poder selecionar aquelas que verdadeiramente permitam aos povos indígenas compreender melhor suas relações com o estado e intervir em suas ações. Neste sentido, chama a atenção para o surgimento de um novo tipo de tutela, constituído por uma agenda difusa que se manisfesta em eventos que vão desde o presente seminário, até aqules promovidos pela ONU, Banco Mundial e outras agências.
Ao discutir o formato administrativo do estado brasileiro para lidar com a questão indígena, Krenak posiciona-se em favor da manutenção de um órgão indigenista governamental que ao mesmo tempo dê condições de fortalecimento a governos locais das próprias comunidades indígenas. Seria este o caminho, a seu ver, para construir políticas de compensação verdadeiras, que não se prestem a inibir ou manipular os grupos indígenas, obrigando-os à escolha entre virar peões ou pedir emprego ao estado brasileiro.
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Antonio Brand
Antonio Brand ressalta a inversão do sentido das ações voltadas para a integração dos índios representada pela Constiutição de 1988, ao mesmo tempo em que constata que as alterações no arcabouço legal não implicaram necessariamente em mudanças nas práticas do Estado, sobretudo num quadro em que os avanços políticos não têm sido acompanhados de iguais progressos nas condições objetivas do exercício da cidadania. Adverte assim para os riscos de que o reconhecimento dos direitos étnicos na Constituição de 1988 se tornem letra morta, caso não sejam acompanhados de ações que questionem os rumos impostos pela sacralização do mercado e de suas leis no modelo atual da globalização.
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Artur Mendes
Artur Nobre Mendes, coordenador do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL/FUNAI), apresenta suas linhas gerais, definindo-o como uma experiência inovadora do Estado brasileiro no sentido da incorporação dos povos indígenas, da sociedade civil e da cooperação internacional à problemática da demarcação de terras indígenas. O projeto, entretanto, incorpora ambições mais amplas, pretendendo funcionar como um laboratório para a experimentação de políticas públicas voltadas para a questão indígena, buscando contribuir particularmente para a criação de mecanismos de controle social das ações do Estado por parte dos povos indígenas, e para a geração de formas qualificadas de participação destes últimos na estrutura da FUNAI.
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Gersen Baniwa (COIAB)
Gersen Luciano caracteriza as relações entre Estado e sociedades indígenas como regidas por uma lógica de dominação e violência que, tendo passado por diferentes estágios, coloca hoje o desafio de superar-se uma tutela camuflada, por meio da qual se oferecem alguns direitos aos índios sem fornecer-lhes os meios para colocá-los em prática. Considera caber aos povos indígenas a tomada de iniciativas para romper com as estruturas clientelísticas e corporativas do Estado, de forma a superar a fase de “meia cidadania” em que se encontram atualmente. Neste sentido, destaca a importância da consolidação de um movimento indígena que possa interferir na visão das classes políticas do país e garantir as mudanças estruturais necessárias à colocação em prática dos direitos dos índios assegurados pela lei.
No que diz respeito à “crise do Estado” mencionada por diversos participantes do Seminário, afirma temer que ela seja usada como pretexto para transferir responsabilidades definidas pelo próprio poder dominante em relação aos povos indígenas, criticando ao mesmo tempo o despreparo da máquina administrativa e burocrática do Estado para operacionalizar as novas disposições legais em vigor. Chama atenção, por outro lado, para o fato de que a relação das sociedades indígenas com o Estado já não passa apenas pela FUNAI, destacando, nesta direção, a importância de serem fortalecidas as alianças com diferentes setores e agentes sociais. No caso específico da comunidade acadêmica, menciona a necessidade de superar-se a dimensão unilateral na qual a ciência é vista como um fim em si mesma, em favor de uma visão em que o cientista se conceba também como um agente político capaz de contribuir no processo de luta dos povos indígenas.
Acentua que a pluralidade de idéias e discursos do movimento indígena deve ser respeitada, destacando que sua articulação com diferentes segmentos e setores da sociedade pode contribuir para combater a lógica corporativista que rege boa parte dos organismos de governo, entre os quais a FUNAI e a FNS, e que tem levado à manipulação de grupos indígenas em favor de interesses que não lhes dizem respeito.
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Jorge Terena (CAPOIB)
Jorge Terena inicia sua apresentação questionando a tese da “crise do estado”, que serviu de mote a vários participantes do Seminário, salientando que, do ponto de vista indígena, a situação de crise já dura 500 anos. Esta, de caráter estrutural e dissociada das circunstâncias momentâneas do quadro econômico-financeiro do país, é descrita esssencialmente como uma crise de identidade, na medida em que resulta da recusa do Estado brasileiro em aceitar a expressão da identidade dos diversos povos indígenas que habitam o país.
Analisa a seguir as repercussões no campo indigenista da reforma administrativa implementada pelo governo FHC, alertando para o risco de que a terceirização dos serviços sociais do governo em benefício das ONGs possa conduzir, na prática, a uma “terceirização da tutela”, na qual, mais uma vez, os grupos indígenas ficariam excluídos da prerrogativa de conceber e gerir seus destinos.
Finaliza a apresentação com uma avaliação da questão indígena no Congresso, destacando os obstáculos antespostos à votação de diversos projetos de interesse dos grupos indígenas por uma bancada esmagadoramente desfavorável a eles. Ao assinalar que, via de regra, o diálogo entre índios e governo tem sido iniciativa dos primeiros, reclama a definição pelo Estado de programas e projetos de política indigenista de curto, médio e longo prazo, em substituição às ações de emergência improvisadas que têm caracterizado sua intervenção até o momento.
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Marcio Santilli (Instituto Socioambiental – ISA)
Marcio Santilli apresenta a proposta de um novo modelo administrativo para a gestão dos povos indígenas, baseada na descentralização da estrutura da FUNAI através da criação de Programas Regionais, que teriam como objetivo atender à pluralidade das situações indígenas no país, buscando, ao mesmo tempo, constituir uma estrutura menos vulnerável aos vícios do clientelismo. No novo formato proposto, a concepção tutelar que norteou tanto o SPI quanto a FUNAI seria substituída por uma perspectiva de fomento, na qual o Estado deixaria de deter o monopólio da intermediação das relações entre os índios e os demais atores sociais, passando a ser visto como parceiro na resolução de problemas. Os índios teriam reconhecida assim sua condição de sujeitos políticos no exercício direto de seus direitos e de suas relações.
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Megaron Txucarramãe (FUNAI)
Megaron Txucarramãe, então administrador da FUNAI em Colibra, justifica sua participação no Seminário pela necessidade de informar seu povo sobre as dicussões em torno do enfraquecimento do órgão indigenista governamental. Posiciona-se contra a transferência da gestão da saúde indígena para a Fundação Nacional de Saúde, considerando que esta medida pode representar o golpe de misericórdia na já combalida estrutura da FUNAI. Além disto, mostra-se cético em relação às possibilidades do Ministério da Saúde conduzir satisfatoriamente a questão, tendo em vista a precariedade dos serviços de atendimento à população brasileira em geral sob sua sua responsabilidade. Manifesta-se contra o modelo de terceirização da gestão da questão indígena via ONGs, considerando ser responsabilidade precípua do governo federal as tarefas de demarcação de terras, fiscalização das áreas demarcadas, educação e saúde indígena.
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Sidnei Possuelo
Sidnei Possuelo analisa a discussão sobre a crise da FUNAI, buscando relativizar as críticas feitas ao órgão e questionando as intenções do estado neo-liberal ao propor sua reformulação, que teme poder servir de pretexto para que o governo fuja de suas responsabilidades repassando-as para a sociedade civil. No caso específico da saúde indígena, afirma que sua concentração no sistema da Fundação Nacional de Saúde -FNS pode representar efetivamente o fim da FUNAI, tendo em vista a extensão do aparelho administrativo que seria transferido desta última para o Ministério da Saúde (cerca de 40 Casas do Índio, 600 cargos de DAS, ambulâncias, aparatos de comunicação, etc.), sem qualquer garantia, a seu ver, de que a medida traga alguma melhoria efetiva nos serviços prestados aos índios.
Rebate as acusações de paternalismo dirigidas contra a FUNAI, estranhando que o termo só seja aplicado no caso das ações do estado voltadas para os índios. Considera que, bem ou mal, a FUNAI é uma referência para eles, prestando-se, na pior das hipóteses, a ser um alvo definido para cobranças e críticas. Destaca ainda a atuação do órgão na demarcação de terras indígenas, que o aponta como responsável por 78% da superfície das terras demarcadas até o momento no Brasil. Ainda quanto a este campo, destaca que a responsabilidade do estado não deve se limitar à demarcação, mas ir muito além no sentido do apoio prestado aos índios na busca de meios para sua sobrevivência.
Lembrando ações bem sucedidas do Estado na resolução de problemas como o das endemias rurais, afirma ser a presença de vontade política o elemento decisivo para o bom funcionamento dos programas e projetos propostos por esta esfera. Considera positiva, ao mesmo tempo, a presença das ONGs na cena indigenista, afirmando que o grande inimigo dos índios está na postura discriminatória em relação a eles, sobretudo quando parte do governo e do Congresso Nacional.
Ao final, faz um apelo em favor da resolução do problema de Raposa Serra do Sol, lembrando que seu último ato como presidente da FUNAI foi a assinatura do reconhecimento daquelas terras como terras indígenas.